Contos

A PRESENÇA DO ENCONTRO

O vento esbarrava nos ombros, estalava, espalhando os cabelos que se acomodavam. Um carro de som passava na rua, e despejava suas vibrações sonoras nos corpos, gerando outros sons, uma voz seguida de risada. Acompanhada da visão dos lábios a se mostrarem, abrindo a luz para os dentes, cínicos. Então, há um movimento, vários passos, pés: a areia saltando do asfalto, saltando pelas sandálias, sapatos. Alguns esbarrões. Para-se novamente, e ali está, uma fotogenia imaginável. Amarelo cores, azul borrão no céu, nuvens que pingam no ar. Vários olhos, saltavam suas percepções no espaço, captavam tristezas, sorrisos. Eis a percepção privilegiada dos olhos? Nenhuma máquina sonharia com tal fotogenia. E então, um espirro. As partículas se dilaceraram pelo espaço, manchando o vidro do meu relógio, e acabei, sentindo no ar, o aroma de sua boca. Não estava no script, uma improvisação na mise-en-scène. 
Centro da cidade, rebuliços de histórias ambulantes, cada qual por sua causa, peculiares. O centro da cidade, fica cada vez mais quente. Contribuição do Sol, e das histórias de cada pessoa. A proximidade dos prédios, suas argamassas e concretos, favorecem ao calor, e você, e eu canalizamos. Uma gota de suor grita existência e salta esplendidamente para um de seus fins: o chão, a camisa, a entrada para os seios.
Esbarrões. São lembretes de como as pessoas andam tão próximas umas das outras, mas que de longe, se agridem. Atritos são mais rasos.  Há dinâmica nos rostos que não se tocam. Vibram no espaço, na graduação das cores, os olhos acompanham o ritmo, e no final do dia, reverberam cansaço. As mãos dadas por muito tempo, soam, soltam-se, e voltam ao afeto público de laço. Houve momento de te tocar mais uma vez. Senti a aspereza de sua pele, e alguns de teus sinais davam dicas de sua personalidade: eram teus, só teus.

Tirou um cigarro, acendeu e tragou. Vi, senti o cheiro de menta dissipar, purificando o ar da cidade. Esse era o recorte de estar contigo, de te reconhecer aos poucos, no que demonstravas, ou no que escapavas ser. Nada de ver em fotos, ou em algo que tenha telas, satélites ou voz polifônica. Tudo é diferente. Meios de comunicação são meios, e não conexões, servem como uma pequena tampa para saudade. O estar, com toda sua dinamicidade, dilacera, violenta, e assassina indubitavelmente, a saudade.


SENTINELA

Adora pessoas que esparramam seus corpos na cama, e vivem quanto podem, um dia de cada vez. Tinha certeza que isso necessitava de uma boa concentração. Tinha 24 anos em plena atividade jovial, mas que só eram afirmados em documentos de identidade. Vivia cansada. Rezava por uma cápsula de motivação. Mas era só um pensamento sobre rezar, um desejo que esperava que alguém escutasse, e que realizasse.  Cronograma mental feito. O dia tem longas 24 horas. Cada hora, pensava, valia para um ano de sua vida. Fazia musculação com seu próprio corpo, seu sacrilégio diário de levantar-se da cama, com tanto peso sobre si.  Banho difícil, tomar café um sacrilégio. Já havia escutado bastante, que quando essas dificuldades acontecem, basta seguir, basta continuar.
Seguiu, pegou as chaves, celular e bolsa. Não se olhou no espelho, afinal não sabia que rosto usar. Iria como uma desconhecida de si, pelo menos hoje. A vida necessita de surpresas de vez em quando.
Passos. Caminhou, andou. Na verdade, ela queria algo: correr.
Parou diante da porta. Não conseguiu se mover. Que tragicômico é o relógio dos desejos, sempre estão acertados para além ou atrás de uma porta. Mas por que não se contentar em estar na porta? E veio a tentação…Lembrava-se de seus fuxicos matinais, e logo seus olhos marmorizaram. Mas não culpou-se por tê-los, culpou a porta que emperrou. Reclamou do sol que teimava em desmanchar aquela carne podre, e a deixava nua, para olhos estranhos. Que olhos? Via vultos, barulho. Os olhos são as janelas da alma? Que triste saber que ninguém dentre os vultos possui alma. Ninguém? São vultos.

Que seja, algo em comum sempre é bem-vindo. Seguiu, pegou seu lugar na rua, deslizou sobre o bueiro a céu aberto, em meio a corrente sanguínea que são os centros da cidade, sujeita a ser sempre sangue venoso, aquele que sempre retorna para algum lugar.


O RELOJOEIRO

- Texto que se aproveitou de uma soneca da minha procrastinação habitual...

Dessas coisas cotidianas da vida, nos andares de lá pra cá, venho há algum tempo procrastinando o pedido do meu relógio que parou de funcionar. Andava em muitos lugares, com ele no pulso e nada. Sempre adorei sua pulseira de couro, sua cor marrom lhe cai bem, e seus números prateados me dão orgulho. É um relógio charmoso, de ponteiros bem calibrados, novo, e que arranca elogios de quem o vê. Mas, sua função, cadê? Tenho muitas atividades a realizar no dia, mas acabo-me por me fingir de esquecido e passar por alguns vexames. Algumas pessoas, acreditando na tarefa comum de tal objeto não o veem como adorno, e perguntam-me apressadas: “- Que horas são?” Eu respondo, prontamente já ensaiado: “– Nossa, creio que meu relógio acabou de parar!!!” – ainda finjo, absorto, e outros ainda insistiam em me perguntar: - “Que horas são? Quanto falta pra tudo terminar? E novamente eu respondia, mas dessa vez com mais ousadia: “- Ah! Meu relógio está parado. Uso somente como enfeite, pulseira, veja...”

E foi assim muitos dos meses no ano, no qual eu usava o celular para não chegar atrasado, mesmo chegando, para marcar o tempo de sono, mesmo dormindo mais do que eu havia planejado. Meu corpo comia o ar, o tempo, pras bandas de bancos, biqueiras, açudes, faculdade, mercados e camas, mas nada de ir a um relojoeiro. Um dia quase parei no mercado, para falar com o mago do tempo dito relojoeiro, mas nada, passei direto, alegando que o dia estava quente demais para uma parada.

Um dia, sem planos, indo para lugar algum parei progressivamente no mercado. Tudo ia me convencendo de que eu poderia parar e dar somente uma olhada. E fui no mago, no tal relojoeiro. No mercado, naquela bendita passarela de brinquedos e frutas, a minha infância falou alto, sussurrou, cantou aos meus ouvidos. Por todos os brinquedos em que almejava possuir, as novidades coloridas e que hoje só me causam nostalgia boa. E lá no final falei com o relojoeiro, e perguntei sobre o serviço, e não era caro. Entreguei o relógio, esperei o serviço, observando o seu arsenal de ferramentas, um porão de relógios esquartejados. O mago me pergunta qual bateria eu gostaria para o meu relógio. Tem as menos duráveis, e as mais duráveis, estas com energias de topo de vida. Escolho a segunda, pois quero uma boa vida útil e saio com esperança no peito e penso: “É, tudo é uma questão práxis...”

Mas que atividade besta e simples de se fazer! Ir a um local para a troca de baterias de um relógio. Mas eu não conseguia. Eu não consigo fazer muitas coisas ainda, mas vez ou outra me permito, e é essa a minha janela de permuta, ou uma soneca da minha procrastinação. O que fiz da minha infância, onde e quando deixei de gostar de brincar de bonecos, a minha paixão predileta. Onde deixei meus amores platônicos? Quando me fiz adulto? Que peso tem essas obrigações regulatórias, que tanto me recuso a fazer, em meu contexto atual de vida?


Por vezes me pego encarando cenas do cotidiano como alguém que tivesse voltado no tempo. Pessoas a passar, carros parados, bicicletas a correrem. Isso tudo um dia, virará fluxo de lembrança. Esses dias que vão se passando e a gente mal vê, serão dias das nossas lembranças daqui a 40 anos. Tenho medo, mas também curiosidade remota, do saudosismo que vou esbravejar a que me perguntar sobre minha juventude.

MEMORANDO

Estavam muitos ali, aglomerados em pequenos espaços pela sala. A dor silenciosamente era dividida em fatias de bolo amargo para cada um que lá entrasse. Compreender tal acontecimento não é o forte de nós, pessoas. Lá o mistério explicava tudo, esse que é tão conhecido por tantas famílias desde às pobres às ricas.

Um cheiro de café chora e lá se vão todos a beber o café ameno, batizado de saudade. Nenhuma cor vibra, nem os móveis pretendem falar nada sobre lembranças. Todas as imagens que passam por mim estão neutras, estáveis em preto e branco. Eu ainda não estava ali. Não estaria. Todos os abraços e falas sobressaiam como água fria sobre chaleira quente. E como não falar do vazio? Da fisgada do membro perdido cantada por Chico.

Todos os meus olhos buscavam refúgio, mas pairavam sobre uma cadeira, sobre uma abertura de porta, sobre um crochê enquadrado. Mesmo pedindo silêncio aos móveis, a casa sussurrava aos meus ouvidos cenas da sua memória. E os animais da casa visitada? Será que discutiam entre si sobre o acontecido? Saberiam eles de todas as incertezas humanas, sobre nossas injeções diárias de eternidade usadas a torto e a direito mas que um dia falham. Pensa-se em aumentar a dose.

Nenhuma partida é igual, nem que seja por causa parecida. Esta me invade de culpa por não torcer junto com uma camisa verde icasiana. Partida seria por sair de perto que de quem partiu, mas quem imagina se há partida para quem de nós distanciamos? Não é um dia de silêncio. É uma vida de silêncio, mas que vai diminuindo e não chega a desaparecer. Meus olhos sempre ficarão vidrados, guardados ao atravessar aquela porta, à pequena caixa de som a cantar as músicas celestiais.



NOSSO ENCONTRO


Cruzo o Sol, ando no meio de ilhas. São lá pelas 4 ou 5 horas da tarde que outro Sol brilha, e o céu fica contorcendo-se pra não chorar. No percurso para o sorriso, vou mais atento, mais vibrante, e cada passo parece memorizar o cheiro da tarde de folha bronzeada de poente. As canções, são todos os passos marcados para o vislumbrar de todos os nossos encontros.

Chego. Lado a lado, amarelo queimado por toda parte abocanhando a multidão. Preparo, e vejo como a tarde está linda para um bom passeio recheado de carinho. Mas é o que eu vim fazer ora, ora! De longe a vejo chegar e a se colocar no espaço. Pinta-se aquelas fotografias e seus lábios gritam sua chegada, ao se colorir de vermelho, cor da minha pedra ágata. Não passam-se segundos, e estou alí, frente a frente contigo que insiste em me afrontar com o rio dourado disfarçado de olhar.

Silencio. Escuto tudo o que meu corpo vem a me falar: - Teus braços, me diz, há algum tipo de substância que encanta a longa data? Acumulando-se em caixa exclusiva, em que logo escreveria teu nome? Não há dúvidas, que meus braços desdobram-se por teu corpo como quem desbrava o mar, como quem quisesse engolir o oceano. Essas peles que gritam fúrias por todos os poros carecem de atenção, atenção esta, que é dada pela natura que observa e agracia.       Se soubesses que andas cantarolando as canções em meus ouvidos ao invés de Chiquinho, deixaria de me maltratar pelo resto dos dias...

(Ah, essas palavras que aqui veem! Me pedem com urgência e estima, que eu as selecionem e coloque-as nesse barco branco, servindo de viagem intergaláxica por entre nossos sentimentos não neuronais, mas por hoje me deixo aqui.)

Eu leio meus livros de poemas dessa forma: abro, leio o que me vem, leio outros. Às vezes me surpreendo, outras não. O nosso encontro de sorriso poente é assim, um novo surpreendente achado poético, num livro de Drummond.

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